À
frente do rosto dele estava Um outro rosto desconhecido E o outro rosto não se
movia. Então
ele viu o outro rosto. E era lindo, o outro rosto. Ele ficou olhando, encantado
com tanta beleza. Mas o outro rosto não se movia. Era tão bonito o outro que
ele não resistiu a tentação de tocá-lo. Talvez não devesse, pensou. Quando
pensou, já era tarde demais. Tinha estendido a mão para tocar devagarinho na
pele do outro rosto. O outro rosto não se movia. Tão bonito, o outro rosto sob
seus olhos e tão macia a pele do outro rosto sob seus dedos, que num impulso
aproximou ainda mais seu próprio rosto. Tão próximo agora que conseguia sentir
seu próprio hálito, como um vento miúdo fazendo esvoaçar os cabelos finos,
perfumados, da cabeça do outro rosto. Mas o outro rosto não se movia. Com
toda a suavidade que era capaz, e era muita, tomou entre as mãos o outro rosto
e foi aproximando sua boca da boca do outro rosto. Até seus lábios tocarem nos
lábios do outro rosto, à espera que a saliva da própria boca umedecesse também
a boca daquele outro rosto.
Com
a ponta da língua, tentou abrir lentamente uma brecha entre os lábios do outro
rosto. Os lábios do outro rosto estavam secos e não se abriam. E o outro rosto
continuava a se mover. Mordeu então a boca do outro rosto. Primeiro de leve,
depois mais forte. Cada vez mais faminto, arrancando pedaços de uma maça
vermelha. Mordeu os lábios, o queixo, e também as faces e o nariz e os olhos do
outro rosto. Com doçura, com paixão, com ansiedade e fúria. Mas o outro rosto
não se movia. Da mesma forma como tinha aproximado do seu o outro rosto,
afastou-o com as duas mãos iradas. Uma das mãos segurou com força os cabelos
finos, perfumados, enquanto a outra erguia-se para esbofeteá-lo uma, duas,
várias vezes. Um fio de sangue escorreu do canto da boca do outro rosto. Que
mesmo assim, não se movia. Então apanhou a navalha que trazia no bolso. Um
click seco libertou a lâmina. E num golpe veloz, num único gesto, com todo ódio
que era capaz, e era muito, cortou a pele macia do outro rosto. E o outro
rosto, lavado de sangue, ainda assim não se movia.
Então
apanhou a pedra que trazia no bolso. Ergueu-a no ar e com um golpe duro bateu
na boca do outro rosto, para quebrar-lhe os dentes. Os cacos escorreram pelos
cantos da boca, pedras num rio de sangue. Cortado, os dentes quebrados: o outro
rosto não se movia. Então apanhou o estilete agudo que trazia no bolso. E com
um golpe preciso, furou os dois olhos do outro rosto. Cortado, os dentes
quebrados, olhos vazados: e não - o outro rosto não se movia.Afastou o próprio
rosto e contemplou novamente o outro rosto. Embora destruído, o que restava do
outro rosto era uma máscara morta sobre um outro rosto vivo. Estendeu as duas
mãos e arrancou a máscara do outro rosto.Por trás da máscara, por baixo do
outro rosto estava o rosto dele mesmo. Inteiro e sem ferimento algum, o rosto
dele mesmo. E era lindo, o próprio rosto vivo por trás da máscara morta do
outro rosto. Ele ficou olhando o próprio rosto. Ele estendeu as mãos e tocou o
próprio rosto com todo carinho - e era muito, esse carinho - que era capaz. Foi
então que o próprio rosto - que não era o outro rosto nem o rosto de outro, mas
sim o próprio rosto vivo por trás da máscara morta do outro rosto - finalmente
começou a se mover. E disse: Mais
nítido que as ruas sujas, reata o hexagrama das cores do arco-íris suspenso no
céu.
Caio
Fernando Abreu
(e eu)
Nenhum comentário:
Postar um comentário